dezembro 30, 2004

Fumava ao espelho


Passagem de ano, passagem obrigatória pelo bunker das ideias para um até já. Deixei que me ligassem à máquina, mas cedo desistiram: tudo era Ásia, tudo era água, tudo eram números. Desligaram, mas deixaram-me ficar ali a auscultar as ideias dos outros.

“Coimbraaaa… Tem mais encantooooo… Na horaaaaa…. da des-pe-di-daaaa…”, entoava aquela mulher misteriosa vestida de rosa, fumando um cigarro e olhando-se ao espelho. Nesse mesmo espelho, vi reflectido um silogismo assombrado. Se a morte pode ser variável de afluência às urnas, se a morte só acontece uma vez, se a memória do povo é curta, logo, o único valor acrescentado da pessoa mais próxima dessa morte só pode ser o da sua própria morte.
Não lha desejo. Mas há coisas que não percebo.

Até já.

dezembro 29, 2004

Amnésia


Evito-te, mas tu insistes; esta cidade também é tua. Salgas-me os lábios com a tua brisa, mandas Kafka chamar-me para a metamorfose que transforma a tristeza em nova musa para os assuntos do mundo e a ira em Tágide do foro privado. Perdi (perdemos) porto e marinheiro. Agora chegou a minha vez de te desafiar: usa a espuma das tuas ondas para nos limpar a memória colectiva, de Lisboa ao Texas, de Sumatra a Darfur.

Tentei o balanço. Vão vocês, eu fico; alguém tem que cá estar quando eles voltarem.

O semi-quarto

Embora não sendo comentadora, nem jornalista, permito-me, na qualidade de público que procura informação, um breve comentário a um episódio jornalístico que não mereceria uma linha, não fora o alcance na vida de alguns cidadãos. Basta que um jornalista reencarne em justiceiro, para que não haja justiça possível. Basta que se publique - com direito a chamada na primeira página -, num dia de luto quase mundial, que, em 2029, um asteróide colidirá com a Terra, que o risco é o mais alto de sempre, mas que o mais provável é nunca acontecer, para que um jornal se transforme em leitura de casa de banho.
Que os senhores que entretanto foram corridos passaram o seu breve reinado a enganar-nos, já nós sabíamos. Mas que, no final do ano, quando já demitidos, se dêem ao luxo de desmentir que não pagam o que já não pagaram, é inominável. Nem o jornalismo serve para isto, nem acredito em quartos poderes. Mas pareceu-me importante reforçar a atitude jornalística, por respeito por aqueles que mais o merecem, seja da parte da sociedade ou do Estado: os desempregados e os doentes.

dezembro 28, 2004

Recolha de fundos

Apoio Humanitário - Cruz Vermelha. Fundos recolhidos para minorar a tragédia que não pára.
O NIB é de uma conta especial do BPI:

0010 0000 137222 70009 70

O dia em que caíu a ponte de Nunutali

No dia em que a ponte de Nunutali caiu a vida ruiu. A economia parou, a família desparentou-se, a mikrolete ficou-se e o arroz empapou-se.
Perderam-se quatro vidas no dia em que a ribeira engordada pela chuva comeu os pilares da dita e lhe arrastou o tabuleiro de ferro.
Nesse dia, como em todos os outros, o meu carro tinha guincho e, por isso, lá fui de socorro. Quando cheguei à margem do lado de Gleno, naquele dia de praça, assustei-me com as mercadorias todas do lado de cá e os compradores todos do lado de lá. Era o único malai. Mas tinha guincho.
Identificado o "despigmentado" da circunstância, logo os ombros se viraram para mim, com a habitual curiosidade zombeteira de quem fita o que não é normal, mas agora com a novidade da impaciência pela solução trazida, de certeza, por "engenheiro ou director". Tinha um guincho...
Afastei alas destemido, desenrolei o guincho até ao leito do rio que a corrente, agora míngua, deixava a nu. Logo se precipitaram os locais, antes feitos árvore e pedra, invisíveis e inúteis. O que se passa a seguir prova a passagem de Adam Smith por aquelas paragens.
Aproximaram um enorme toro de madeira do guincho. Os do lado de lá. Os do mercado. Aproximaram...
- Vai-te custar 500.000 rúpias! atiraram-me.
Os famintos do arroz iniciaram um murmúrio que só deixei de ouvir quando me lembrei da expressão escocesa que melhor dava cor à minha presença ali:
“Fazes tanta falta aqui como um generoso par de maminhas numa freira”.
- Não dou!
- Este lado é nosso! responderam-me
- O arroz está do meu lado. sentei-me
Em uma hora havia um carreiro feito à custa da tracção de sandálias por onde filas de formigas transportavam os víveres para o lado do comércio. 70 por cento caía.
30 por cento alimentou muitas almas num dia.
Não há moral na história. Apenas o peito da freira.

dezembro 27, 2004

Twelve/Twenty six

Quem já viveu nas paragens remotas por onde a fúria dos elementos mais castiga os vulneráveis compreende duas coisas: a inacreditável lição de que a vida prossegue - imparável, para lá dos números da catástrofe; e de que se não trava uma batalha entre homem e natureza - os dois andam, destroem-se, renascem e fracassam lado a lado.
A vasta maioria das pessoas atingidas por esta maré morta de Natal vai continuar a ter vidas tão frágeis quanto o bambu que sustém as suas casas. Há-de agradecer aos deuses pela compaixão regurgitada pelas placas, poupando algum dos seus. Vai baptizar o Tsunami com deferência e reconstruir, uma vez mais, as caducas existências que preenchem. Tem as terras queimadas pelo sal mas sobreviverá desnutrida como quando estavam férteis.
E terá mais filhos. Amanhã.
Sabe que hoje é carne e algum dia será pedra. E depois água, ou folha, ou..
Esta vasta maioria de seres é mais perene que qualquer “hard-power” Ocidental assente em vigas de aço que subsistem às agressões da água mas claudicam perante as do fogo.

Natal 8.9

A Sophia

Do fundo da terra, chegou Marmorte sem se fazer anunciar. Brincadeiras na areia, acabadas a boiar. Pescadores de sonho, de nada vos serve nadar. Caçadores do sol, sem histórias para contar. Salguei a cara, com as ondas do meu mar. Soube-me a ti; continuei a chorar.

dezembro 22, 2004

Nobres atitudes, estáveis rupturas

Vista a desagregação em fúria do Governo, e a dúvida latente sobre o alcance da maioria do PS nas próximas eleições, convinha que a 20 de Fevereiro de 2005 alguém lembrasse o Dr. Jorge Sampaio que ele é o Presidente de todos os portugueses...
... mesmo daqueles que votaram nele...

A minha lista de blogues

Num momento em que, estranhe-se, a blogosfera dextra se recusa em postar o que quer que seja da actualidade política e se limita a "parabenizar-se" mutuamente em classificações de blogues, adiro a este vácuo de ideias e publico a minha.
Consta de apenas cinco endereços, porque foi realmente ponderada:
Em primeiro lugar, este;
Depois, este;
Em terceiro, este;
E em último, mas sem desprimor para os autores - este.
Verão que o resultado não foge muito ao exercício dos demais blogues em que me inspirei.

Lamechice? Que lamechice?

a) A do Portas em Doboj?

b) A do Bagão a pôr as culpas na Nelinha?

c) A do Lopes a dizer que nos quer dar muito amor?

Obrigada pelos nós, os laços e os ângulos. Recíprocos.
Hoje estou em défice de prosa. Acordei Sharon Stone, em busca de um objecto perdido, agora sinto-me Nicole Kidman, como se bastasse não falar nas coisas para que elas não existissem... Vou visitar pastores e responder aos quizz do Natal em acção.

Ai a gaita...

... mais à lamechice...
Vamos lá a escrever!
Bem. Sê razoavelmente bem.vinda... Pandora...

dezembro 21, 2004

Game Boy

Passei por ti ontem mais uma vez, eram quase horas de jantar. Enfiei as mãos nos bolsos, à procura de um rebuçado, de uma pastilha, de uma réstia de sonho. Nada. Estavas com o nariz colado na montra de uma loja de electrodomésticos, olhando entusiasmado para o que me pareceu à primeira vista um boneco animado de gravata encarnada que passava num dos écrans de plasma. “Compras-me aquele game boy?”, perguntaste-me, apontando para a imagem no televisor. Olhei para a marca da tua respiração no vidro... “Levo-te antes ao circo no Carnaval; com este game boy só perdes pontos.”
Não há arco-íris sem chuva.

dezembro 20, 2004

O Sarilho da República

O Presidente da República está metido num grande sarilho.
As hipóteses de uma maioria absoluta do PS são remotas (como são remotas as hipóteses de qualquer maioria absoluta neste regime) e uma coligação com o PS à cabeça não tem muita viabilidade: porque o PS pode bem não querer formar governo nesta conjuntura e nessas condições; porque uma aliança de governo com o PCP dá quebras de tensão até a Jorge Sampaio; porque o Bloco de Esquerda não quer; porque ninguém compreenderia que fosse com a direita.
Mas não é esse o sarilho do Presidente. O sarilho (em que se meteu em Julho e não agora) é que a única solução que a sua dissolução de Novembro pode viabilizar é uma maioria absoluta do PS. Não se trata de querer favorecer amigos – bem longe disso. Trata-se de não ter à disposição nenhum outro resultado que justifique a sua decisão nas condições e no tempo em que a tomou.
O sarilho é que, segundo o Eurostat, o país está, não na estaca zero, mas pior do que estava em 2001. O sarilho é que se disto tudo resulta nova trapalhada, um governo ilegítimo ou uma governação incapaz de resolver o país então temos o regime em causa. E esse é um grande sarilho para o garante do regular funcionamento das instituições.

Sobe, sobe, balão sobe...

A música que se ouve em fundo no tempo de antena do PS (a primeira, porque são duas) é uma ária escrita por Smetana e que se chama "The Moldau".
Curiosamente, sei que esta mesma ária foi proposta para tema de fundo do mesmo PS, mas sob a liderança de Ferro Rodrigues, por ocasião das eleições europeias. Na altura, se se lembram, foi escolhida a mais conhecida ária da Turandot de Puccini - "Nessun Dorma".
A primeira é uma obra sinfónica escrita para orquestra que pretende ser uma epopeia sobre o Rio Moldau que atravessa a Checoslováquia natal de Smetana, e o espírito dos seus compatriotas.
A segunda faz parte de uma das mais belas óperas de que há registo e serve hoje, entre outras coisas, de banda sonora para os mais diversos filmes ou de acompanhamento a imagens sobre a vida e carreira de Luís Figo.
Na altura, parece, The Moldau foi recusada por ter um período frásico demasiado longo e de assim não conseguir enquadrar uma entrada em comício ou o final de um discurso. Escolheu-se Nessun Dorma para significar o acordar dos eleitores para a necessidade de castigar um governo incompetente. Resultou.
Agora recusa-se a necessidade de despertar as pessoas que estarão já de olhos esbugalhados, e opta-se pela sensação de movimento, de envolvimento, de caminho e de sentido certo e único.
Resultado esmagador ou... cura para soluços?

dezembro 17, 2004

Oh Dylan:

... porque é que "A Capital" nunca publica posts nossos na sua secção de Blogues???..

Talvez Keynes e a irracionalidade dos agentes...

Expliquem-me lá como é que o pintor-mor da teoria do "Oásis" critica agora a cegueira da má-moeda política em enfrentar os portugueses com o verdadeiro desastre macro-económico do país!
Expliquem-me então quem é que vem no primeiro lugar da fila dos culpados (com duas maiorias absolutas e os fundos da coesão no auge) de andarmos ainda a discutir a aposta na educação, na qualificação e no investimento no conhecimento por oposição ao betão, alcatrão e à economia nominal.
E alguém me explica se são estas conclusões brilhantes que me farão ver em Cavaco Silva o messias operador do milagre no regime, a partir de Belém?... ao volante da força de bloqueio à execução dessas reformas??
Freud não explica. Gresham não está...

dezembro 14, 2004

Atom Ant returns - next February in a theater near you



À direita e à esquerda prometem-se soluções governativas absolutamente estáveis e para quatro anos, disfarçadas na eventualidade de se não observar um voto útil massivo num ou noutro sentido.
Nem esquerda, nem direita as assumem como projecto. Apenas as admitem como antídoto para males atómicos.
Só é preciso que não se perca de vista uma coisa simples: cada um de nós só pode pôr uma cruz no boletim, e não duas. Se o resultado eleitoral não reflectir, de novo, aquilo que votámos, então voltamos à banhada.
E nesse dia todos os portugueses porão a cruz numa instituição unipessoal eleita por sufrágio universal e directo que eu cá sei, e cujo regular funcionamento não se vislumbra desde Julho...

dezembro 13, 2004

Cromo de Portugal

Fui multado, pela primeira vez em muitos anos de carta e ainda mais de condução.
A infracção dizia respeito à falta de inspecção do carro e doeu-me 250 euros (sim – cinquenta mocas).
Tanta vez que no passado - distante obviamente – merecia realmente ser caçado pela polícia e me safei com a pior linha de argumentação contra os mais sofisticados guardas da GNR, e logo havia de ser apanhado por dois gordos da PSP de "XXX" do Porto que não caíram no meu engodo: sucede que achei por bem dirigir-me a eles no seu terreno, com a sua terminologia. Aquela linha semântica que todos reconhecemos, entre o jurídico-delirante, o jargão de poeta-amador da colectividade lá do sítio e o autoritário-ignorantismo de quem disfarça a parolice com a farda. Ora vejam:

Chibo: Boa noite. Os seus documentos por favor.
Eu: É para já. Se me dá licença tiro-os do casaco que está lá atrás (do carro). Aí tem: identificação, carta de condução... quer o número de identificação fiscal ? (em jeito de o pôr à vontade com uma piadita acessível)
Chibo: (olha-me com imediato desprezo) O Sr. Condutor não tem que me dar conta da sua situação fiscal. Apenas da sua probidade para conduzir!
Eu: (eh lá! Ele disse probidade. Fantástico – temos poeta!) Clarinho, clarinho como acima de sargento estar tenente! (outra piadita estúpida esquecendo-me que a PSP é uma força de segurança CIVIL)
Chibo: tem a inspecção em dia? (olha-me como quem olha o chispe que vai por na panela)
Eu: Sr. Agente esta viatura em que circulo não é minha... perdão, não sou eu o proprietário da viatura em questão e derivado disso (sim, derivado disso) não estava ao corrente da inconformidade jurídica que representa circular com a mesma... viatura.
Chibo: ... (de olhos semicerrados fixa-me)... Prontos - vou autuá-lo!.
Eu: ...?
Já sei, já sei. Mereço cada cêntimo da coima...

dezembro 10, 2004

Fumaça

Em "As viagens na minha terra" há, a certa altura, uma discussão sobre quem é mais forte: se os forcados que enfrentam a investida em fúria de um touro de 450 kg ou se os pescadores que todos os dias enfrentam a vida e o mar, que não tem peso mas também não tem remédio.
Do ponto de vista de quem esteve hoje a olhar o mar durante duas (calmas) horas, e dispensou 15 minutos a ler "Visão", "Sábado", "Público", e "DN" sobra uma sensação de relativização daquilo a que chamaria de... Lisboa.
Amanhã Paulo Portas não deixará a pose de Estado (Novo) e fará certamente um ataque duríssimo à tentação em que se deixou caír o mais alto magistrado da nação. No tom certo. Na incoerência total, travestida pela aparência que é o que conta.
Santana não deixará de se fazer imagem de todos os portugueses a quem os poderes instalados não permitem o progresso na vida que escolhem. A chamada vítima. É natural que o faça: não está habituado a apresentar e representar projectos, nem a bater-se por eles. Não sabe fazê-lo.
Sócrates não deixará de... não acrescentar nada à nossa existência. Estará certamente com o melhor que tem o PS para formar Governo em Fevereiro (Maria João Rodrigues, Santos Silva, Vieira da Silva e alguns mais) e saberá já que o maior do PS (Vitorino) partirá nesse mês. Sabe também que a factura do apoio massivo/imediato de todas (menos uma) as estruturas do aparelho vence, como qualquer factura comercial, a sessenta dias... sem desconto.
É como se vê. Diga o que disser às 20.00 horas do dia 10 de Dezembro de 2004, Sampaio não deixará de ser o que é. E a realidade continua como sempre.
São mais corajosos os pescadores, por mais viris que sejam os forcados.

dezembro 06, 2004

O mais puro Serviço de Interesse Público




A RTP voltou ontem à melhor tradição de Serviço Público.
Como é fácil justificar os impostos que recebem. O bem produzido é indisputado e colectivamente apreciado.
Como nada é perfeito, só faltava tirar o som de cada vez que aparecia Pitt (não é que a diferença fosse muita) e olvidar questões como profundidade dramática do argumento ou capacidade de interpretação do elenco.
Não há contraditório para Claire. Talvez a mulher mais bonita do mundo.

dezembro 02, 2004

A última vez

que escrevo sobre este cavalheiro.
E só para dizer que me faz lembrar a cena de "O meu Diário" de Nani Moretti em que o próprio desanca um crítico cinematográfico que havia feito uma apreciação para lá de optimista a um filme que era uma catástrofe sob todos os aspectos.
E o crítico, que (hilariantemente) estava sossegadito na cama a dormir, não só ouve a desanda como chora copiosamente.
Não tenho sanhas rancorosas. Mas também não tenho talento para sonso.
Quem viu o programa da SIC Notícias de rescaldo à decisão do PR sabe bem qual das duas personagens comparo com este escriba intestinal.

Benzido com água forte

Não tardaremos a ouvir Paulo Portas, referencial da estabilidade democrática promovido, a propor-se para viabilizar qualquer solução de Governo. Qualquer. Faz parte daquilo que considera ser o seu avenir pessoal patriótico.

E já cá cheira que Sampaio nos pretenderá fazer crer que a sua jogada terá sido, desde o início, a de acabar para todo o sempre com o tipo de populismos que Portas encarna, com a tese de que não dissolveu em Junho para queimar definitivamente este abcesso do sistema político em Novembro depois de quatro meses de descredibilização total. Nada me parece tão absurdo quanto isso.

Escusa é de andar a mandar a boca para a imprensa: agora faça-o mesmo. Não só porque nos deve. É porque à mulher de César, não basta parecê-lo.